Fundo Falso # 2
Matheus Rocha Pitta intervém radicalmente no espaço da Progetti. Bloqueia o acesso pelo térreo ao vão que se abre, banhado por luz natural, nos três andares do sobrado no centro do Rio de Janeiro. Outras passagens, porém, são abertas. Manipuladas pelo artista, as paredes tornam-se referências para uma arquitetura alterada com que o artista exerce uma crítica dos processos de produção e circulação da arte. Está em questão a ambivalência da imagem e sua centralidade na definição dos valores socialmente aceitos. Pois mesmo a percepção imediata dos espaços da galeria, que o artista re-configura, já é pautada pela força simbólica da imagem e suas ambivalências.
Em Drivethru#2, vídeo projetado em grande escala ao fundo da galeria, testemunhamos uma operação de desmanche de carros. Mantida às escuras a sala dissimula a arquitetura. Já a luminosidade noturna do vídeo evoca o curso de algo que se esconde. Mas, a ação transcorre como na rotina de profissionais experientes, cujos corpos são plenamente integrados à máquina que vai sendo desfeita. Dois homens, dispostos em simetria, trabalham ritmados na extração das peças. O giro, o desencaixe, o tranco e a retirada se repetem, encadeados: corpo-máquina-corpo-máquina. Sempre em movimento, debruçados no interior do capot, deixam, porém, rastros de um outro acontecimento: a cada pequeno deslize de duas filmagens sobrepostas, um segundo desmanche vai sendo flagrado dentro da própria imagem.
Avançando na discussão da celebrada produção da arte brasileira que na década de 60 rompeu os limites com as margens da sociedade, o artista enfrenta a sobreposição contemporânea de instâncias informais e institucionais – dois fluxos semelhantes, em trânsito simultâneo, nos mesmos labirintos da economia e do poder. Ambos, sabemos desde Foucault, regulam os indivíduos por meio da manipulação e controle do próprio corpo.
As partes extraídas de cada um dos dois Escort, emparelhadas, vêm a formar um outro carro, de peças duplicadas. Porém, a precariedade da junção, feita com fita adesiva, resulta em um objeto disfuncional, cujos contornos evocam um corpo sem vida. Essa presença velada lentamente se impõe como uma segunda imagem no interior dos pacotes com as peças. Como as imagens no vídeo, os espaços da arte se sobrepõem ao do viver, um se estendendo no outro.
A sala escura, além de falsear a arquitetura, desestabiliza a quem quer que penetre a galeria. Na penumbra, como já mostrou Claire Bishop, mesmo com a luz intermitente do vídeo, é preciso se esforçar para localizar o próprio corpo. Enquanto a claridade permite distinguir os objetos, favorece a orientação e a auto-consciência do indivíduo, a caixa preta (que se estabeleceu como uma prática de imersão na produção contemporânea) dissolve o sujeito na sombra homogênea e sem limites de seus vazios. A relação entre essas experiências é semelhante à que une a pulsão ou desejo de morte (death drive) e o instinto vital, conceitos com que Freud desestabilizou as certezas da razão e redefiniu o sujeito moderno. A imersão acirra a consciência dessa dualidade pois leva o indivíduo a entregar-se a uma assimilação mimética do espaço, com o qual se confunde e onde seu corpo deseja perder-se.
A já tradicional definição freudiana da coexistência do desejo de vida e de morte, parece alterada pela mobilidade que vigora na experiência contemporânea. O pulso volátil da imagem determina, cada vez mais, os princípios de organização do viver. Ambos – corpo e espaço –, funcionam como camadas parcialmente reveladas e a qualquer momento reversíveis.
Essa experiência, desde as mínimas ações e no contato com as coisas banais, vem a impregnar até mesmo o objeto-fetiche do bem estar da classe-média – uma emblemática geladeira. Qualquer objeto, na cultura da imagem, pode ser alterado subitamente, conduzir a um lugar imprevisto ou portar um conteúdo secreto. Aqui, como nas páginas criminais, geladeiras funcionam como escape ou, ainda, como lápide para os incontáveis corpos, absurdamente emparedados, capturados em registros jornalísticos. As passagens e fundos falsos são, ironicamente, para Matheus Rocha Pitta, metáforas espaciais da proximidade entre o campo da arte e as relações de troca que correm sob a luz do dia, veladamente.
Entre sombra e luz, Fundo Falso #2 põe o sujeito em movimento. Provoca, assim, a alternância de diferentes estados de consciência. O próprio corpo, apagado na penumbra, ressurge (para si e para o outro que o observa) enquanto percorre os lances desse circuito, proposto pelo artista, que re-significa o espaço. O eletrodoméstico, na galeria, opera como passagem por onde nossos corpos vencem simbolicamente um emparedamento que até então desconhecíamos. Alguns esquemas e estruturas – que em trabalhos anteriores, como Diagramas para Drive in, eram pistas falsas para uma futura arqueologia do trabalho – reaparecem aqui na aparente sistematização das imagens: a simetria dos elementos no vídeo; a tríade entre a sala escura no térreo, a passagem pelo mezanino (que permite a visão luminosa do vão da clarabóia) e a ambivalente sala no mezanino, mantida na penumbra.
Matheus Rocha Pitta disseca as duplicidades sem fim do modo de circulação da mercadoria em que não apenas o corpo, mas a arte e o próprio desejo estão cada vez mais implicados. Àquilo que vemos, soma-se o que não se revela. É o que acontece com as peças extraídas e embaladas no vídeo: estão cravadas sob uma das paredes falsas erguidas pelo artista na Progetti. Um mapeamento como esse, que traça poeticamente a localização de passagens secretas e espaços reversíveis, é de desafiadora execução, pois não são afeitos à estabilidade, nem adquirem configuração definida. Demanda, assim, a marcação em diagramas, inventários e maquetes que fornecem ao observador pistas e rotas possíveis, neste território alterado. Essas aparecem nas duas fotografias de Diagramas de desmanche. O livro STEREODEMO revisa o que é sedutor na ilusão, ao demonstrar o princípio de uma satírica estereografia do duplo objeto. A sobreposição de peças equivalentes dos dois Escort simula, como uma imagem fantasma, a terceira dimensão. E, ainda, uma das duas geladeiras é ao mesmo tempo lápide e maquete do espaço da galeria. A todo instante e em cada situação observada há indícios de operações paralelas. O paradoxo talvez seja o de que mesmo que descobertas, se espera que sejam de algum modo ignoradas ou reiniciadas em uma outra fenda no corpo social.
Luiza Interlenghi
Outubro de 2010